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Publicado em: 24 junho 2024 às 10:25 | Atualizado em: 24 junho 2024 às 10:27

Determinação implacável: A mãe que virou investigadora para encontrar o assassino da filha

Por Douglas Ferreira

A mãe Lucinha Mota e a filha Beatriz – Foto: Arquivo Pessoal

A determinação de Lucinha Mota e a negligência do Estado de Pernambuco diante do caso marcaram profundamente a tragédia da pequena Beatriz Angélica Mota Ferreira da Silva, morta aos sete anos em dezembro de 2015, em Petrolina/PE. Este episódio, que completa nove anos em dezembro deste ano, foi relembrado em reportagem recente do Universa/Uol. O caso ganhou projeção nacional graças à incansável busca de Lucinha, mãe de Beatriz, por justiça, que nunca deixou de trabalhar para esclarecer o crime.

Entenda como tudo aconteceu:

‘Me formei investigadora e me disfarcei para achar quem matou minha filha’

Beatriz Angélica Mota Ferreira da Silva foi encontrada com marcas de facadas dentro do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, onde estudava, o último lugar em que foi vista ainda com vida. A mãe dela, Lucinha Mota, decidiu encontrar o assassino da filha, conduzindo por anos uma investigação paralela à da polícia.

Após percorrer mais de 700 quilômetros a pé, entre Petrolina e a capital Recife, Lucinha conseguiu identificar o criminoso. O homem foi indiciado por homicídio qualificado e está preso por estupro de outra criança. Ele confessou o crime e agora aguarda julgamento.

‘Cheguei ao fundo do poço’

“Três meses após o crime, eu cheguei ao fundo do poço. Já tinha tentado tirar minha vida de todas as formas, minha família estava sempre muito vigilante e minha última alternativa foi deixar de comer. Em uma das idas ao hospital, percebi que só tinha duas alternativas: ou eu tirava a minha vida de uma vez por todas e acabava com aquela dor que estava me dilacerando ou lutaria para dar justiça a Beatriz”, conta Lucinha.

Ela acrescentou que, “Naquele momento, entendi que precisava viver para isso. Foi quando minha consciência retornou e comecei a buscar meios para me cuidar, cuidar da minha saúde mental e física. Passei mais ou menos um ano cuidando de mim e cobrando uma resposta do Estado”.

Lucinha cursou Direito e fez um curso de investigação – Foto: Reprodução

‘Decidi fazer investigação paralela’

“Quando as imagens das câmeras do colégio surgiram, depois de falarem que elas estavam com defeito e que não tinham material, eu decidi fazer uma investigação paralela. Começaram a aparecer algumas inconsistências. Logo de cara, o delegado responsável na época apresentou a tese de que Beatriz não tinha sido assassinada no local em que foi encontrada — o que ia contra o que todos os especialistas da área de segurança e peritos me diziam. No final de 2019, descobri que o chefe do Departamento da Polícia Científica de Pernambuco, que acompanhava o caso, trabalhava para o colégio como segurança particular”, declara.

Mas nada mais parava a mulher deternada. “Todo dia 10, eu fazia manifestações na frente da escola, da delegacia, do Ministério Público, mas fiquei impossibilitada quando chegou a pandemia e entrei em desespero. Foi quando nasceu o Somos Todos Beatriz, para fazer um movimento online”, explicou.

‘Decidi cursar Direito’

“Toda semana eu fazia uma live e foi assim que conheci Freddy Ponce, investigador de homicídios em Miami, nos Estados Unidos. Ele me encontrou e ofereceu seus serviços, disse que me treinaria e me formaria uma investigadora criminal. Nas primeiras reuniões ele só me ouvia. Depois, produziu um relatório traçando o perfil do assassino da Beatriz. A polícia trabalhava com teorias: vingança contra o colégio, contra algum funcionário, satanismo. Com base nas imagens, no caminhar e gestual do assassino, Freddy traçou o perfil de um criminoso sexual que tinha como vítimas crianças. Comecei a ter aulas semanais com ele e, com base nas imagens das câmeras, ele produziu um retrato falado digital.

Também decidi cursar Direito para entender a linguagem técnica, o juridiquês, que era muito difícil. É uma linguagem muito rebuscada e as pessoas sofrem porque não compreendem”.

‘Me vestia de vendedora de cosméticos’

“Fiz mais de 10 mil panfletos com o retrato falado e entreguei de norte a sul do país: em Pernambuco, Bahia, Ceará, Piauí, São Paulo, Rio de Janeiro. Recebia muitas denúncias e, muitas vezes, ia “in loco” investigar crimes de pedofilia em Petrolina. Meu objetivo era identificar a pessoa e conduzi-la até a delegacia para fazer o exame de DNA e confrontar com o material do assassino encontrado na arma do crime. A nossa meta era colocar esse DNA no Banco Nacional de Perfis Genéticos. Comecei por um bairro e fomos ampliando para outras cidades e Estados. A gente tinha uma rotina semanal: com quem falar, como falar, como gesticular. Foi um trabalho muito bem feito pelo Freddy. Eu pedia para o governador colocar o DNA do assassino da Beatriz no banco de dados para que a gente chegasse à autoria. Se o perfil dele era o de um criminoso sexual, a chance de a gente o identificar nesse banco era alta.

Peregrinei por anos, batia de porta em porta com revistas de amostras. Conversando sobre os produtos, trazia as informações de quem eu estava procurando e sempre descobria o que queria. Por duas vezes, no Ceará, identifiquei suspeitos, fui até a delegacia, compartilhei com o delegado, ele encaminhou uma viatura e fez todos os encaminhamentos, até a coleta do material genético — mas o Estado de Pernambuco não ia buscar”.

Caminhada de 721 quilômetros até o Recife

Foi quando decidi tomar uma atitude mais forte, que chamasse a atenção do país inteiro. Resolvi caminhar 721 quilômetros, de Petrolina até Recife. Outras pessoas se mobilizaram e foram comigo nos 24 dias e 23 noites. Quando chegamos à capital, em dezembro de 2021, o governador se viu na obrigação de me receber. Eu pedi que ele colocasse o DNA presente na arma do crime contra Beatriz no banco nacional e ele me falou que já tinha colocado, mas eu sabia que não.

Foi só quando ameacei denunciá-lo à Corte Interamericana dos Direitos Humanos como cúmplice do assassinato que eles colocaram. Quando isso finalmente foi feito, chegaram à identidade do assassino de Beatriz. Ele já está cumprindo pena por estupro contra uma criança, uma menina de oito anos, que aconteceu um ano depois da morte da Beatriz. O DNA do homem apontado como assassino estava no banco nacional desde 2017. Essa é a maior prova que eu tenho de que eles só confrontaram o material genético da arma do crime depois da caminhada até Recife. Conseguimos finalizar uma etapa, que é o inquérito. Em relação a isso, consegui justiça. A gente chegou à autoria, chegou à motivação. Mas isso só terá fim no dia em que o assassino for julgado e condenado, no dia em que eu sair do júri com a sentença dele. Só assim a Beatriz vai ter a justiça que ela tanto merece”.

Investigação complexa

Lucinha falou com a imprensa após a coletiva que revelou o assassino de Beatriz. Por meio de nota, a assessoria de Paulo Câmara, que era o governador de Pernambuco à época, disse que “a investigação do caso Beatriz foi uma das mais complexas já realizadas pela Polícia Civil de Pernambuco”. Segundo a nota, só com a evolução da tecnologia e a dedicação da equipe de genética forense da Secretaria de Defesa Social foi possível chegar ao DNA do autor. “Imediatamente o resultado foi colocado no banco de perfis genéticos do Estado e se chegou ao criminoso, que já respondia por estupro de vulnerável”, conclui a nota.

Conclusão

Enquanto não se chegou à irrefutável prova genética, a força-tarefa e os delegados do caso produziram um inquérito de 24 volumes, com 124 análises de perfis genéticos, seis reconstituições, 442 depoimentos, sete tipos diferentes de perícias, 900 horas de imagens e 15 mil chamadas telefônicas analisadas. No entanto, foi apenas graças à determinação e à persistência de Lucinha Mota que a verdade finalmente veio à tona.

Lucinha estudou técnicas de investigação, cursou direito e até se disfarçou de vendedora de cosméticos para descobrir a verdade. Sua luta incansável expôs falhas e omissões graves do Estado de Pernambuco, que, apesar de ter o DNA do assassino no banco de dados desde 2017, só agiu após a pressão pública e a ameaça de levar o caso à Corte Interamericana dos Direitos Humanos. Este caso não é apenas um testemunho da força de uma mãe em busca de justiça, mas também um alerta sobre a necessidade de maior eficiência e transparência por parte das autoridades na condução de investigações criminais.