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Publicado em: 10 maio 2024 às 09:44

Quando a drenagem pluvial não dá conta: o caso Rio Grande do Sul

As recentes chuvas no Rio Grande do Sul trouxeram consigo uma série de tragédias e desafios, com mortes, feridos, desaparecidos e desabrigados. Um dos episódios mais dramáticos ocorreu em Porto Alegre, onde as águas do Guaíba transbordaram de maneira devastadora, inundando áreas críticas como a rodoviária e o aeroporto Salgado Filho. Esse evento não apenas paralisou a capital gaúcha, mas também levantou questões urgentes sobre o manejo de águas pluviais e a infraestrutura urbana.[1]

O Guaíba, frequentemente classificado como lago pelas autoridades e no Google Maps, comporta-se de maneira dual, combinando características de rio e lago. Segundo Joel Avruch Goldenfum, diretor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, e Jaime Federici Gomes, professor de Engenharia Civil da PUCRS, o Guaíba possui áreas de escoamento bidimensional nas margens, típicas de lagos, e um canal central com correnteza, um traço distintivo de rios. Essa natureza híbrida contribui para a complexidade em definir e gerenciar o corpo hídrico, especialmente em situações de enchentes extremas.[2]

As cheias recorrentes e intensificadas, como a que ocorreu em abril de 2024, deixaram claro que a infraestrutura atual é insuficiente para lidar com os volumes crescentes de água, exacerbados pelas mudanças climáticas. Essas condições são agravadas pela presença do fenômeno El Niño, que tende a aumentar as precipitações na região. A prefeitura de Porto Alegre reporta que o Guaíba tem uma extensão de margens que somam 185 km e cobre uma área de 496 km², com profundidades variando de 2 a 12 metros, o que ilustra a vasta escala e capacidade de armazenamento de água, mas também destaca a vulnerabilidade da região a eventos de enchente.[3]

O problema é recorrente

Historicamente, Porto Alegre enfrenta desafios significativos com enchentes, especialmente em áreas mais baixas e próximas ao Guaíba. As primeiras grandes enchentes registradas datam do início do século XX, quando a infraestrutura da cidade ainda estava em desenvolvimento e não havia sistemas de drenagem adequados. Desde então, a cidade tem trabalhado para melhorar sua capacidade de gestão de águas pluviais, contudo, observa-se que os acontecimentos dos últimos dias mostraram ao mundo que os esforços foram insuficientes.

Como já dito, apesar da situação caótica, há pelo menos dois eventos passados que poderiam ter servido como lição para a criação de infraestrutura viável para arrefecer a força e quantidade das chuvas. As enchentes de 1941 e as subsequentes em 1967 demonstraram a vulnerabilidade da infraestrutura urbana existente há época, que ressoa ainda hoje. De lá para cá, o aumento das áreas impermeáveis devido ao crescimento urbano exacerbou os problemas de escoamento superficial, uma questão que ainda desafia os urbanistas da cidade.

Em anos recentes, com o aumento da frequência de eventos climáticos extremos, observou-se que as medidas existentes são insuficientes. As cheias devastadoras de 2024 é um exemplo crítico, em que o rápido aumento do nível do Guaíba, combinado com a capacidade insuficiente dos sistemas de drenagem para manejar o volume de água, resultou em inundações extensas que afetaram infraestruturas críticas e deslocaram milhares de pessoas.

Deficiências na drenagem pluvial

A drenagem pluvial urbana em Porto Alegre e em outras partes do Rio Grande do Sul enfrenta desafios significativos, resultantes de uma combinação de fatores estruturais, ambientais e antropogênicos. Entender essas causas é essencial para identificar soluções eficazes e prevenir futuras enchentes.

O crescimento urbano, especialmente em Porto Alegre, tem sido rápido e muitas vezes desordenado. Isso resultou em um aumento substancial de superfícies impermeáveis, como concreto e asfalto, que impedem a infiltração de água no solo. Áreas antes absorventes são convertidas em zonas de escoamento rápido, sobrecarregando os sistemas de drenagem existentes que não foram projetados para lidar com tais volumes de água.

Aliado a isso, a falta de manutenção regular dos sistemas de drenagem contribui significativamente para a sua ineficácia. Canais de drenagem, bueiros e outras infraestruturas frequentemente sofrem com o acúmulo de detritos e sedimentos, reduzindo sua capacidade e eficiência.

Em terceiro lugar, muitas partes do sistema de drenagem em Porto Alegre foram construídas décadas atrás e não correspondem mais às necessidades da população atual nem aos padrões modernos de engenharia. Isso inclui canais mal dimensionados e sistemas de escoamento que são inadequados para as demandas atuais.

Desenvolvimento urbano e mudanças climáticas

O desenvolvimento urbano tem um impacto direto e profundo sobre a hidrologia urbana. À medida que a cidade se expande, mais áreas são pavimentadas, reduzindo a permeabilidade do solo e aumentando o volume e a velocidade do escoamento superficial. Esse escoamento é muitas vezes direcionado para sistemas de drenagem que não foram projetados para lidar com tais cargas, aumentando o risco de transbordamentos e inundações, caso do Rio Grande do Sul.

Além disso, as mudanças climáticas têm exacerbado o problema. Porto Alegre e outras áreas do Rio Grande do Sul têm experimentado um aumento na frequência e intensidade das chuvas. Eventos extremos de precipitação, como os observados nos últimos anos, estão se tornando mais comuns devido às mudanças nos padrões climáticos globais. Este aumento nas chuvas intensas sobrecarrega ainda mais os sistemas de drenagem, muitos dos quais já são inadequados devido ao desenvolvimento urbano e à falta de manutenção.

A combinação de infraestrutura inadequada, manutenção deficiente e desafios impostos pelo desenvolvimento urbano e mudanças climáticas cria um cenário perfeito para as enchentes urbanas frequentes e severas em Porto Alegre. Para mitigar esses problemas, é crucial que haja um investimento contínuo na atualização dos sistemas de drenagem, juntamente com a implementação de práticas de planejamento urbano sustentável que considerem tanto as necessidades atuais quanto as futuras pressões ambientais. Em outras palavras, é fazer uma projeção de novas enchentes e preparar a infraestrutura de drenagem pluvial para conter inundações ainda maiores.

Soluções viáveis

Para drenar grandes quantidades de água em áreas urbanas, especialmente durante eventos de chuva intensa, que exige rapidez no escoamento, é necessário combinar várias técnicas de engenharia hidráulica e infraestruturas robustas. Algumas das soluções para o manejo de grandes volumes de água incluem:

  1. Sistemas de retenção e detenção de águas pluviais:

Uma das soluções primárias são os sistemas de retenção e detenção de águas pluviais. Reservatórios de detenção são estruturas projetadas para armazenar temporariamente a água da chuva durante períodos de precipitação intensa, liberando-a lentamente de volta ao ambiente, o que ajuda a reduzir os picos de descarga e minimizar o risco de inundações. De forma similar, as bacias de retenção também acumulam água temporariamente, mas são diferenciadas por manterem uma quantidade permanente de água, que além de auxiliar no controle de enchentes, pode ser utilizada para recreação ou embelezamento paisagístico.[4]

  • Canais e leitos de expansão:

Além desses reservatórios, os canais de drenagem e os leitos de expansão são fundamentais na infraestrutura de manejo de águas pluviais. Canais de drenagem são especialmente construídos para transportar rapidamente a água da chuva para longe das áreas urbanizadas, prevenindo acumulações que poderiam levar a inundações. Por outro lado, os leitos de expansão são áreas designadas que podem ser inundadas de forma controlada durante chuvas extremas, servindo como um buffer para expandir a capacidade de canais e rios temporariamente.[5]

  • Infraestruturas verdes avançadas:

Além das infraestruturas cinzentas, as soluções verdes, como parques de inundação e wetlands construídos, oferecem métodos inovadores e sustentáveis de gestão de águas pluviais. Parques de inundação são espaços urbanos que funcionam como áreas recreativas regulares, mas são projetados para acomodar inundações durante chuvas intensas, atuando como bacias de detenção naturais. Os wetlands construídos são áreas alagadiças artificiais que não apenas retêm água, mas também melhoram sua qualidade por meio de processos naturais de filtração, fornecendo um benefício duplo de controle de enchentes e tratamento de água.[6]

  • Túneis de alívio de inundação:

Finalmente, os túneis de alívio de inundação, como os túneis de desvio, são empregados para transportar rapidamente excessos de água pluvial de áreas urbanas densamente povoadas para rios ou reservatórios distantes. Isso minimiza o impacto das inundações em áreas residenciais e comerciais, proporcionando uma resposta rápida e eficaz durante eventos de chuva extremamente intensa. Essas infraestruturas são componentes cruciais de um sistema integrado de gestão de águas pluviais, que quando combinadas, oferecem uma solução robusta e multifacetada para os desafios das enchentes urbanas.[7]

Considerações finais

As enchentes recentes no Rio Grande do Sul destacam a necessidade premente de revisões e melhorias significativas na gestão de águas pluviais, especialmente em áreas densamente povoadas como Porto Alegre. As deficiências expostas pela dualidade e complexidade do Guaíba, junto às crescentes mudanças climáticas, requerem uma abordagem multifacetada que combine tecnologias de engenharia avançada com infraestrutura verde, visando não apenas o controle eficiente do escoamento superficial, mas também a promoção de uma interação harmoniosa com o meio ambiente urbano.

A recorrência de enchentes severas demonstra que as soluções atuais são insuficientes e que a adaptação às novas realidades climáticas é crucial. O planejamento e a implementação de sistemas robustos de drenagem urbana devem ser priorizados para evitar a repetição de tais catástrofes. Isso inclui o investimento em sistemas de detenção e retenção, ampliação dos canais de drenagem, instalação de estações de bombeamento em áreas críticas e a criação de espaços verdes multifuncionais que possam absorver excessos de águas pluviais.


[1] G1.Rio ou lago? Entenda o que é o Guaíba, que transbordou e agravou as enchentes no Rio Grande do Sul. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/07/rio-ou-lago-entenda-o-que-e-o-guaiba-que-transbordou-e-agravou-as-enchentes-no-rio-grande-do-sul.ghtml. Acesso em: 7 mai 2024.

[2] G1.Rio ou lago? Entenda o que é o Guaíba, que transbordou e agravou as enchentes no Rio Grande do Sul. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/07/rio-ou-lago-entenda-o-que-e-o-guaiba-que-transbordou-e-agravou-as-enchentes-no-rio-grande-do-sul.ghtml. Acesso em: 7 mai 2024.

[3] G1.Rio ou lago? Entenda o que é o Guaíba, que transbordou e agravou as enchentes no Rio Grande do Sul. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/07/rio-ou-lago-entenda-o-que-e-o-guaiba-que-transbordou-e-agravou-as-enchentes-no-rio-grande-do-sul.ghtml. Acesso em: 7 mai 2024.

[4] MYNEAR , D. K. et al. “Optimal Systems of Storm Water Detention Basins in Urban Areas.” 1977. https://doi.org/10.13023/KWRRI.RR.104. BIRCH, G. et al. “Efficiency of a retention/detention basin to removecontaminants from urban stormwater.” Urban Water Journal, 3. 2006: 69 – 77. https://doi.org/10.1080/15730620600855894. TRAVIS, Q. et al. Optimizing Retention Basin Networks. Journal of Water Resources Planning and Management, 134, 432-439. https://doi.org/10.1061/(ASCE)0733-9496(2008)134:5(432). Acesso em: 7 mai 2024.

[5] TWAIBU, Semwogerere et al. “Ecological Analysis with Drainage Channels.” Solid State Technology 2020. Acesso em: 7 mai 2024.

[6] STEFANAKIS, A. et al. “The Role of Constructed Wetlands as Green Infrastructure for Sustainable Urban Water Management.” Sustainability 2019. https://doi.org/10.3390/su11246981. Acesso em: 7 mai 2024.

[7] COHENA, W. et al. “A coupled hydrological-hydraulic flash flood forecasting system for Kuala Lumpur ’ s Stormwater Management and Road Tunnel ( SMART ).” 2017. https://doi.org/10.36334/modsim.2017.l19.cohen. Acesso em: 7 mai 2024.