Por Douglas Ferreira
Essa é uma história surpreendente repleta de traumas, espiritualidade, superação e limites humanos. Imagine-se em um avião que cai nas altas montanhas dos Andes, em um local remoto, de difícil acesso e fora do alcance dos radares de resgate. Como sobreviveria por mais de dois meses em condições extremas de frio? Teria coragem de recorrer à carne humana para sobreviver?
Essa história real envolve uma equipe de rúgbi e chocou o mundo. Dos 45 passageiros apenas 16 sobreviveram. Agora, em outubro passado, 51 anos após o acidente, os sobreviventes retornam à montanha onde a tragédia ocorreu, marcando uma jornada de luta pela vida.
Eduardo Strauch, aos 76 anos, é um desses sobreviventes que continua voltando ao local, conhecido como Vale das Lágrimas, a quase 4 mil metros de altitude. Lá, ele e seus amigos enfrentaram 72 dias de temperaturas abaixo de -30°C, abrigando-se no que restou da fuselagem do avião e tomando a difícil decisão de se alimentar dos corpos dos companheiros mortos para sobreviver. A história ganhou fama mundial, sendo retratada em vários filmes, incluindo o recente “A Sociedade da Neve”.
Esse é exatamente o filme que assisti neste final de semana, em boa companhia, no conforto de casa, pela Netflix. No passado já havia visto a película sobre o mesmo tema, o filme, Vivos, além de documentários e até um filme que retrata não o acidente mas uma sociedade secreta criada por aqueles que comeram carne humana (ficção).
O filme atual, A Sociedade da Neve, dirigido por J.A. Bayona, baseia-se no livro de Pablo Vierci e destaca a importância de recontar essa narrativa de “survivor”. Os sobreviventes, mesmo após tantos anos, enfatizam a necessidade de lembrar seus amigos falecidos.
O “pacto de amor”, onde concordaram em usar os corpos uns dos outros para sobreviver, é destacado como uma decisão crucial. A história da “sociedade da neve” revela a solidariedade e a luta pela vida em meio a condições extremas.
Os retornos frequentes ao local, mesmo sendo dolorosos, são vistos como uma forma de homenagear os amigos mortos. A descoberta de um objeto pessoal de um dos sobreviventes por um estranho em 2005 levou a expedições regulares ao local. A experiência, apesar de dramática, é descrita como uma conexão espiritual com a imensidão da natureza e uma compreensão da gravidade da situação vivida.
A história continua fascinando as pessoas por desafiar as expectativas do mundo, que os considerava mortos. O resgate após 72 dias tornou-se um símbolo de perseverança e sobrevivência diante das adversidades.
Comer carne humana configura crime?
Examinemos: O jornal The Guardian recentemente abordou um tema intrigante: “Comer pessoas é errado, mas é contra a lei?” É crucial salientar que ninguém foi morto com a intenção de ser consumido, muito menos por puro prazer carnal.
O que ocorreu foi, de fato, um ato extremo de sobrevivência. Segundo Nietzsche, no livro “Vontade de Potência”: As grandes coisas exigem silêncio ou que falemos delas com grandeza. Com grandeza significa com cinismo e inocência. Importante esclarecer que Nietzsche não utiliza o termo cinismo no sentido pejorativo comum, mas no contexto filosófico-ético de desprezar convenções da opinião pública e da moral. E utiliza o termo inocência no sentido de falar sobre algo sem segundas intenções, com clareza e dignidade.
Esse não é um debate novo, pois parece ser obrigatório em qualquer currículo de Direito discutir o livro “O caso dos exploradores de cavernas” no início curso, mas de forma rasa. Talvez devido aos sérios problemas filosóficos envolvidos, e a filosofia não é frequentemente levada a sério nos cursos de Direito.
O que é a vontade de potência?
“É a sede de dominar, tornar-se mais forte, subjugar outras forças mais fracas e assimilá-las. Até que ponto uma força pode agir? A onda sonora que se propaga, o ímã que atrai, a célula que se divide formando o tecido orgânico, o animal que subjuga outro são exemplos dessa Vontade que não encontra um ponto de repouso, mas busca incessantemente conquistar mais. Cada força, quando dominante, abre novos horizontes, encontra novas passagens, cria novos caminhos”, diz o filósofo alemão, Friedrich Wilhelm Nietzsche.
Por fim, o que sobreviventes nestas condições podem ter feito é um crime? Essa é uma questão complexa, mas é necessário primeiro se discutir se foi algo bom ou ruim. Certo ou errado. O que é fazer a coisa certa? É fazer o que é bom. O que é fazer algo bom? Segundo Nietzsche: é fazer tudo que eleve no homem o sentimento de potência, a vontade de potência, a própria potência.
Portanto, ao comerem parte dos corpos dos que sucumbiram naturalmente à condições extremas dos Andes, os sobreviventes na visão filosófica de Nietzsche, praticaram um ato demasiado humano: portanto bom.
Do ponto de vista jurídico o caso dos sobreviventes do andes se enquadra perfeitamente nas excludentes de ilicitude. São quatro as causas legais: a) legítima defesa; b) estado de necessidade; c) estrito cumprimento do dever legal e d) o exercício regular de direito.