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A Suprema Corte dos Estados Unidos, mais alta instância da Justiça americana, vetou o uso de critério racial na seleção de alunos em instituições de ensino superior nesta quinta-feira (29/6).
Os juízes avaliaram dois casos que contestam que os programas de admissão da Universidade Harvard e da Universidade da Carolina do Norte (UNC) levem em conta a raça dos candidatos. (Veja detalhes abaixo)
Os autores dos processos judiciais argumentaram que o sistema de seleção resulta em discriminação racial e prejudica estudantes asiáticos e brancos, que estariam perdendo vagas para candidatos que consideram menos qualificados.
O presidente do tribunal, John Roberts, disse que por muito tempo as universidades “concluíram, erroneamente, que a pedra de toque da identidade de um indivíduo não são os desafios superados, as habilidades construídas ou as lições aprendidas, mas a cor de sua pele. Nossa história constitucional não tolera essa escolha.”
Roberts complementou que: “por mais bem intencionados e implementados de boa fé” que sejam os processos de admissão seguidos por Harvard e UNC, eles “falham em cada um desses critérios”.
A UNC diz que continua “firmemente comprometida em reunir estudantes talentosos com diferentes perspectivas e experiências de vida”.
Dissidente de Roberts, a juíza Sonia Sotomayor disse que a decisão “retrocede décadas de precedentes e progressos importantes”.
Defensores do uso de ações afirmativas alertam que restrições podem levar à redução no número de alunos negros e latinos não apenas nas instituições citadas, mas em universidades em todo o país.
Por enquanto, um funcionário da Casa Branca diz que os oficiais do governo estão “revisando” a decisão de acabar com a ação afirmativa.
O ex-presidente Barack Obama, que liderou o país de 2009 a 2017, disse que “Como qualquer política, a ação afirmativa não foi perfeita. Mas permitiu que gerações de estudantes como Michelle e eu provemos que pertencíamos. Agora cabe a todos nós dar aos jovens as oportunidades que eles merecem – e ajudar estudantes em todos os lugares se beneficiam de novas perspectivas.”
Como EUA usou cotas raciais na história
O uso de cotas, nas quais um determinado número de vagas era reservado a pessoas de minorias raciais, foi considerado inconstitucional pela Suprema Corte em 1978. Mas, na mesma decisão, o tribunal permitiu que universidades usassem ações afirmativas, nas quais a raça dos candidatos é apenas um entre os vários aspectos analisados, com objetivo de formar um corpo estudantil mais diverso.
Nas décadas seguintes, vários processos judiciais contestaram a prática, mas a Suprema Corte sempre reafirmou sua legalidade. No entanto, na atual composição do tribunal, seis dos nove juízes pertencem à chamada ala conservadora (indicados por presidentes do Partido Republicano, três deles por Donald Trump), formando uma “supermaioria” que abriu caminho para reverter 45 anos de precedentes.
Em 2022, essa maioria na Suprema Corte já surpreendeu o país ao abandonar quase 50 anos de precedentes e anular o direito constitucional ao aborto, que era garantido desde a decisão do caso chamado Roe versus Wade, de 1973.
Se no caso do aborto a decisão do tribunal contrariou a opinião da maioria dos americanos, que eram favoráveis à manutenção de Roe versus Wade e ao direito constitucional ao aborto, pesquisas de opinião mostram um cenário mais complexo no que se refere às ações afirmativas.
Apesar de apoiarem a diversidade racial no ensino superior, a maioria dos americanos é contra o uso do critério racial dos candidatos como fator para admissão. Segundo pesquisa do Pew Research Center divulgada no início de junho, “metade dos adultos norte-americanos são contra que universidades levem em consideração raça e etnia nas decisões de admissão”.
No mesmo levantamento, 49% dos entrevistados disseram que considerar a raça dos candidatos torna o processo de admissão menos justo, enquanto apenas 20% afirmaram que torna o processo mais justo, 17% acreditam que não afeta, e 13% disseram não ter certeza.
Outra pesquisa, encomendada pelo jornal The Washington Post e pelo instituto Ipsos revelou que, apesar de 60% dos americanos considerarem programas para aumentar a diversidade “uma coisa boa”, 56% apoiariam uma decisão da Suprema Corte que proíba universidades de considerar a raça dos candidatos em seus programas de admissão.
Critérios subjetivos
O caso contra Harvard, uma das universidades mais prestigiosas e competitivas do país, é especialmente significativo por argumentar que estudantes pertencentes a uma minoria racial, os asiáticos, são prejudicados pelo uso de ações afirmativas.
Em processos anteriores, a alegação costumava ser a de que alunos brancos, que formam a maioria da população do país, eram discriminados em favor de candidatos negros ou latinos. No caso de Harvard, o argumento é o de que candidatos asiáticos estão perdendo vagas para estudantes brancos, negros e latinos que consideram menos qualificados.
Para a Asian American Coalition for Education (Coalizão Asiática-Americana para Educação), grupo formado em 2014 e que apoia os autores das ações, os sistemas de admissão em Harvard e outras universidades de elite representam “cotas raciais, na prática” e causam “danos enormes” a estudantes de origem asiática.
“Muitos sentem a necessidade de esconder ou minimizar sua identidade racial para serem admitidos”, diz um porta-voz do grupo.
Segundo a organização Students for Fair Admissions (Estudantes por Admissões Justas, ou SFFA, na sigla em inglês), responsável pelas ações na Suprema Corte, como candidatos de origem asiática costumam ter melhor desempenho acadêmico, Harvard estaria reduzindo suas notas em critérios subjetivos, para limitar seu número e manter o percentual de cada raça no campus inalterado.
De acordo com a SFFA, mesmo com notas mais altas em categorias objetivas, como desempenho acadêmico ou atividades extracurriculares, os estudantes asiáticos estariam perdendo vagas para alunos menos qualificados devido a resultados piores no critério de “avaliação pessoal”, que é subjetivo e inclui aspectos difíceis de quantificar, como “liderança”, “confiança”, “compaixão” ou “simpatia”.
Uma das alegações da SFFA é a de que, se as políticas de admissão fossem neutras em relação à raça dos candidatos, levando em conta apenas o desempenho acadêmico, mais da metade dos estudantes admitidos seriam de origem asiática.
Harvard nega essas alegações e diz usar “uma avaliação individual completa”, na qual a raça dos candidatos é apenas um entre os critérios analisados e nunca é considerada de maneira negativa.
“O comitê de admissão considera o histórico e as experiências únicas de cada candidato, juntamente com notas e resultados de testes, para encontrar candidatos com habilidades e caráter excepcionais, que podem ajudar a criar uma comunidade diversificada em várias dimensões (incluindo interesses acadêmicos e extracurriculares, raça, histórico e experiências de vida)”, diz a universidade em nota.
Os advogados que defendem Harvard na ação lembram que seu sistema de admissões é considerado modelo no país, tendo sido inclusive elogiado pela Suprema Corte em sua decisão de 1978. Ressaltam ainda que o número de candidatos qualificados excede muito o total de vagas, “obrigando a universidade a considerar outros aspectos além de notas e desempenho em testes”.
O sistema de admissão em Harvard, assim como em outras universidades de ponta, é notoriamente envolto em segredo, e menos de 5% dos candidatos conseguem uma vaga a cada ano. Na turma mais recente, de 56.937 inscritos, somente 1.942 foram aceitos, entre os quais 29,9% são estudantes de origem asiática, 15,3% são negros, 11,3% latinos e 2,2% indígenas.
Durante a fase de argumentos orais do caso na Suprema Corte, em outubro do ano passado, um dos juízes, Samuel Alito, questionou o que leva candidatos de origem asiática a receber “notas de avaliação pessoal mais baixas do que qualquer outro grupo”.
“Ou eles realmente carecem de integridade, coragem, bondade e empatia no mesmo grau que os alunos de outras raças, ou deve haver algo errado com essa pontuação pessoal”, disse Alito.
Histórico e ações anteriores
As ações afirmativas nos Estados Unidos são diferentes do que ocorre no Brasil, onde mais da metade da população é negra. No sistema brasileiro, duas leis, de 2012 e 2014, detalham o uso de cotas raciais em universidades públicas e concursos públicos federais, com objetivo de corrigir desigualdades históricas enfrentadas por pessoas negras e indígenas.
Nos Estados Unidos, onde atualmente pessoas negras representam cerca de 13% da população, hispânicos são 19%, e asiáticos em torno de 6%, o histórico das ações afirmativas remonta à década de 1960, quando o movimento de luta pelos direitos civis estava no auge.
Em uma ordem executiva de 1961, o então presidente John Kennedy determinou que fossem tomadas “ações afirmativas” para garantir que trabalhadores não fossem discriminados por sua raça, crença, cor ou origem nacional. Outras medidas semelhantes foram adotadas nos anos seguintes por Kennedy e por seu sucessor, Lyndon Johnson.
O objetivo era oferecer oportunidades a representantes de minorias raciais e combater as desigualdades resultantes dos séculos de escravidão e de políticas de segregação enfrentados pela população negra. Como na época estudantes brancos formavam a grande maioria no ensino superior, as ações afirmativas representavam também uma oportunidade de tornar as universidades mais racialmente integradas.
Desde o início, no entanto, essas medidas provocaram divisões e foram contestadas, especialmente por grupos conservadores, e no fim da década de 1970 um desses casos chegou à Suprema Corte.
Rejeitado pela faculdade de medicina da Universidade da Califórnia, onde 16 de 100 vagas eram reservadas para alunos de minorias raciais, um estudante branco chamado Allan Bakke entrou com um processo alegando que esse sistema de cotas era inconstitucional e violava a Lei dos Direitos Civis de 1964.
O tribunal anunciou sua decisão em 1978, concordando com o argumento e tornando o uso de cotas raciais inconstitucional. Mas os juízes permitiram que, mesmo sem cotas, as universidades continuassem a usar ações afirmativas em determinadas circunstâncias e pudessem incluir a raça dos candidatos entre os critérios de admissão, para promover a diversidade no campus.
Atualmente, a prática é permitida em instituições de ensino na maioria dos Estados, com exceção da Califórnia, Flórida, Michigan, Nebraska, Arizona, New Hampshire, Oklahoma e Idaho, onde o uso de ações afirmativas considerando a raça dos candidatos é proibido em universidades públicas.
A Suprema Corte reafirmou sua posição 25 anos depois, no caso Grutter versus Bollinger, que contestava o uso de ações afirmativas pela Universidade de Michigan e foi decidido em 2003. Agora, no entanto, as ações diante da Suprema Corte pedem que os juízes revertam essa decisão.
As ações contra Harvard e a UNC foram iniciadas em 2014 e são fruto dos esforços do ativista conservador Edward Blum, que já moveu mais de 20 processos questionando o uso de preferências raciais em diversos setores e é o fundador da SFFA.
A organização diz representar “mais de 20 mil estudantes, pais e outros que acreditam que preferências raciais em admissões a universidades são injustas, desnecessárias e inconstitucionais” e defende que “a raça e a etnia de um estudante não devem ser fatores que prejudicam nem ajudam a ganhar admissão em uma universidade”.
A SFFA entrou com os processos em nome de candidatos rejeitados, alegando que as universidades praticam “discriminação racial injusta e ilegal em suas políticas de admissão”, o que é negado por ambas.
Juízes de instâncias inferiores deram decisões favoráveis às duas universidades, mas a SFFA apelou, e os casos acabaram litigados até chegar à Suprema Corte, no ano passado.
Além das alegações contra ambas universidades, a SFFA pede que o tribunal “anule Grutter versus Bollinger e determine que nenhuma instituição de ensino superior possa usar classificações e preferências raciais ou étnicas como fatores nas admissões”.
De acordo com a SFFA, o uso da raça em processos de seleção viola a garantia constitucional de igualdade de proteção da lei.
Alternativas e dificuldades
Defensores do uso de ações afirmativas salientam que elas são essenciais para que o ambiente acadêmico possa refletir a diversidade racial da sociedade americana e ressaltam que isso é importante para a formação dos alunos e beneficia estudantes de todas as origens.
Também afirmam que restrições levariam a aumento da desigualdade, prejudicando principalmente estudantes negros e latinos.
“Se Harvard deixasse de levar em consideração a raça como um fator em seu processo de admissão e adotasse as alternativas racialmente neutras sugeridas pela SFFA, o resultado seria um corpo estudantil que não conseguiria alcançar a diversidade e a excelência que buscamos”, diz a universidade em nota.
“Isso comprometeria severamente a capacidade de alcançar os benefícios educacionais oriundos de um corpo estudantil diversificado em diversas dimensões, incluindo raça”, afirma Harvard.
Mesmo entre a comunidade asiática, não há consenso sobre o tema. Enquanto organizações como a Asian American Coalition for Education pedem o fim das ações afirmativas, outros grupos, como o Asian Americans Advancing Justice, dedicada à defesa dos direitos civis de americanos de origem asiática, são favoráveis à prática.
Ainda é cedo para saber que alternativas as universidades podem usar com o objetivo de manter a diversidade. Mas muitos defensores das ações afirmativas apontam para as dificuldades enfrentadas por instituições que abandonaram a prática e buscaram outras ferramentas, como considerar as condições socioeconômicas dos candidatos.
Um exemplo frequentemente citado é o da Califórnia, onde as ações afirmativas foram proibidas e, apesar dos esforços das instituições de ensino, a população estudantil não reflete a diversidade do Estado.
“Apesar de extensos esforços, a Universidade da Califórnia enfrenta dificuldades em matricular um corpo discente suficientemente diversificado racialmente”, disseram representantes da universidade em documento enviado à Suprema Corte para apoiar as políticas de ações afirmativas.
“Isso é especialmente aparente nos campi mais seletivos da UC, onde os alunos negros, indígenas e latinos estão sub-representados e relatam sentimentos de isolamento racial”, diz o texto.
*Com reportagem de Alessandra Corrêa, de Washington para a BBC News Brasil