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Publicado em: 24 maio 2023 às 18:28

A história da arqueóloga que encontrou vestígios da pré-história na caatinga

Por: Sílvio Leite

De vez em quando, Niéde Guidon se amaldiçoava de ter largado a vida em Paris e caído no meio do nada no Piauí. Quando a barra pesava muito, ameaçava: vou largar tudo e voltar pra lá.

 

Passaram-se 50 anos e a arqueóloga franco-brasileira chegou aos 90, fincada no sertão. Agora pergunta-se quem está disposto a encarar a sua briga cotidiana.

 

Na primeira viagem para achar vestígios da pré-história na caatinga, no volante do próprio carro e já quase chegando, ela encontrou uma ponte caída e teve de voltar sem nada para mostrar. Convenceu os franceses a patrocinarem uma missão ao sul do Piauí em busca dos desenhos rupestres dos nossos antepassados e, em plena ditadura, conseguiu a demarcação de uma área protegida onde já transformara o nada em Parque Nacional da Serra da Capivara.

 

E assim continuou a sua luta insana para mostrar ao mundo os desenhos escondidos no alto da Pedra Furada, perto do povoado de São João do Nonato, a 500 km de Teresina. O sítio arqueológico mais importante do Brasil teve imediato reconhecimento científico internacional, mas a luta continuou. “É um estresse muito grande, ir a Brasília, briga aqui, briga ali”, disse num programa de televisão.

 

Brigou para criar a Fundação Museu do Homem Americano e, em dezembro de 2018, inaugurou o Museu da Natureza, os dois nas imediações do parque. Entrou numa polêmica brava com a elite acadêmica ao contradizer o consenso científico e lançar a hipótese de que os homens chegaram àquele pedaço da América do Sul há 32 mil anos, vindos de barcos pelo Atlântico, muito antes do dogma estabelecido pelos cientistas sobre o tempo e o percurso para o início da ocupação humana no continente. Guidon não comprovou sua teoria, mas ganhou fortes aliados.

 

Com seu um metro e meio, uma incrível energia e um humor bruto, construiu um legado científico e enfrentou sozinha o patriarcado e a cultura dos coronéis ao chegar lá nos anos 70 do século passado. Para defender o parque dos caçadores, contratou mulheres para as guaritas e financiou motos para elas irem e virem de casa, com pagamentos a perder de vista. Foram impecáveis guardiãs, mas às vezes chegavam machucadas no trabalho, e Guidon mandou uns fortões de voz grossa avisar aos maridos que ai deles se levantassem de novo a mão para as esposas.

 

“Sabe o que as francesas fazem se apanham do marido? Moem vidro bem miudinho, misturam na sopa e servem no jantar”, disse, rindo, a Adriana Abujamra, escritora, jornalista e colaboradora do Valor, autora de “Niéde Guidon: Uma arqueóloga no sertão”.

 

Mesmo avessa a entrevistas e quase reclusa, Guidon recebeu Adriana em casa, mostrou as fotos de família, abriu o coração e ciceroneou-a no parque. É ela quem conta com deliciosos detalhes toda esta incrível história no primeiro livro da “Coleção Brasileiras”. Organizada por Joselia Aguiar, o selo vai apresentar mulheres que revolucionaram seus campos de atuação, seja nas artes, na ciência, meio ambiente, na política ou onde mais elas atuaram com destaque, seja no presente ou esquecidas no passado.

 

Como descreve Adriana, a “doutora” desembarcou de vez em São Raimundo Nonato em 1992, acabando com as suas idas e vindas a Paris. O parque acabara de receber o título de Patrimônio da Humanidade da Unesco e tratava-se, então, de conservar o sítio arqueológico e transformá-lo em centro turístico. Tarefa nada simples no “caso de pinturas rupestres a céu aberto, sofrendo a ação do clima, dos vândalos e animais. Nossos irmãos pré-históricos não tiveram a gentileza de usar suportes móveis para desenhar. Os cientistas […] escalavam as montanhas e equilibravam-se em escadas rotas. Exigir isso de turistas era descabido – e arriscado”.

 

O impasse foi resolvido com o dinheiro que começou a pingar junto com o título da Unesco, abrindo a possibilidade de obras de infraestrutura. Era, pois, a hora de atrair “milhares de turistas classe A”. “Quando falo isso em Brasília, dizem que não gosto de pobre. Já temos muitos pobres, é preciso desenvolver esta cidade”.

 

Começaram, então, os projetos em série de Guidon, cada um deles enfrentando obstáculos intermináveis. Hotel com “piranha gigante” no menu. Fábrica de cerâmica com objetos inspirados nos desenhos rupestres. Aeroporto para encurtar a interminável viagem, mas onde quase não se ouvia ronco de avião. Festival de música, dança e teatro, em que se misturavam a sanfoneira local e o maestro francês – não à toa, Adriana deu o título de “Avignon do sertão” ao capítulo sobre o Interfestival no Boqueirão da Pedra Furada, numa referência ao encontro anual do festival de teatro na França.

 

Tudo ou quase tudo deu certo. O parque se expandiu, desdobrou-se em várias instituições, novos quadros foram formados entre a população local, uma universidade chegou a São João e até o aeroporto passou a ter uma linha regular no fim do ano passado. E agora? É só acompanhar Adriana Abujamra na sua fantástica expedição em companhia da grande cientista Niéde Guidon.

 

“Niéde Guidon: Uma arqueóloga no sertão”

Adriana Abujamra – Rosa dos Tempos – 256 págs. R$ 54,90